• Alimentando o ridículo

    Uma das poucas certezas que tenho sobre a vida é que para ela ser bem vivida devemos vencer os nossos medos. Talvez por isso acabemos sempre por atraí-los.

    A última doença que gostaria de ter explicar é aquela que me consiste em ter diarreia quase diariamente e tanta flatulência que nos fazem acreditar que até o cérebro fugiu e todo o corpo se acumulou de ar. Se ao menos pudesse beber para esquecer, mas o álcool era um dos piores despoletadores de sintomas.

    Quando contei a alguém por quem estava atraída a minha condição médica, ele reagiu bem, mas a poucos minutos da ação começar retraiu-se. O meu problema de intestinos era impossível de alienar, disse. Talvez por ser das doenças menos atraentes, existam tantas pessoas sem sequer terem coragem de apresentar o seu estado de saúde a um médico.

    Créditos: Graur Codrin / FreeDigitalPhotos.net


    Para além do ridículo real, há o ridículo imaginário que não quer largar o comando e que é validado por informações espalhadas na Internet, como o facto de nos Estados Unidos o SCI ser a segunda maior causa de faltas ao trabalho ou de que há quem queira que os doentes de SCI adquiram o estatuto de deficiência. Ainda que algumas informações reconfortem, por sabermos que há alguém que nos compreende verdadeiramente, na verdade o que realmente necessitamos é da ausência de desculpas.

    O medo do assalto da diarreia levava-me a passar horas sem comer (o que por vezes ainda agravava outros sintomas) no trabalho, evitar usar transportes públicos sem possibilidade de escape em momentos de urgência, como o metropolitano,  e a decidir nunca comer antes de apanhar um autocarro que viajasse em autoestradas, mesmo que ele partisse às 19:00 horas. Até ir ao cinema era tudo menos um momento de relax.


    Tinha um encontro marcado para as 21:00 horas? Então o período entre as 20:15 e as 20:45 estava destinado à casa de banho e não era para retocar a maquilhagem, mas para tentar inutilmente escapar do pior aspeto possível. Porque mesmo que antes de sair de casa fosse sete vezes à casa de banho, a probabilidade de me sentir mal no caminho não era diminuída. Servia somente para me convencer do contrário.

    Há duas verdades que julgo serem partilhadas por todos os doentes de SCI:

    1.ª - Mesmo que sejamos um perseguidores da verdade haverá um momento em que a mentira sobre o porquê de cancelarmos um encontro parecerá inofensiva; 

    2.ª - Mesmo antes de sabermos onde estamos e para onde queremos ir, já sabemos onde fica a casa de banho mais próxima, quantas há no caminho até lá e qual a mais acessível se a que está mais próxima estiver ocupada.

    A doença controlava-me e, inclusive, impedia-me de tentar perseguir o meu sonho de ser jornalista. Os filmes que construímos são repetidos vezes sem conta e o que eu mais visionei era perder uma conferência de imprensa do primeiro-ministro por ser assaltada por uma crise, dado que nunca daria para pedir: “Eu sei que está em direto para as televisões, mas se pudesse fazer um intervalo de cinco minutos para me dar tempo de ir ao WC e não perder pitada, agradecia”.

    Quanto mais fugia do ridículo, mais ridícula era. ¿Quão ridiculamente irónico é isto para si?

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